Saúde mental
Freud Explica nº 54
A Guerra nº 18
Duas coisas nesta guerra despertaram nossa desilusão: a pouca moralidade dos Estados e a brutalidade na conduta de indivíduos
As ilusões nos são recomendadas pelo fato de nos pouparem sentimentos de desprazer e nos permitirem, em seu lugar, gozar de satisfação. Temos, então, de aceitar sem reclamações que, em algum momento, elas se chocam com uma parte da realidade na qual se despedaçam.
Duas coisas nesta guerra despertaram nossa desilusão: a pouca moralidade dos Estados quanto ao exterior, embora se comportem internamente como guardiães das normas morais, e a brutalidade na conduta de indivíduos que, como participantes da mais elevada cultura humana, não se acreditaria serem capazes de fazer algo semelhante.
Sigmund Freud, Tempos de guerra e de morte, 1915, Editora Nova Fronteira, RJ, 2021, página 22; foto: UFMG (1ª guerra mundial)
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Mensagem quixotesca nº 5
Mensagem ao Presidente da República Federativa do Brasil
Reedição desta mensagem às vésperas da sua despedida melancólica de Brasília, por não seguir os conselhos de Don Quixote.
Digníssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil
Com humildade me dirijo novamente a Vossa Excelência com o objetivo único de Vos ajudar a melhor exercer Vosso poder sobre Vosso país e sobre Vosso povo. Com este objetivo dou-vos um novo conselho: Não fortaleça o ódio entre Vossos súditos! Não divida o Vosso povo! Una o Vosso povo! Como tenho visto desde o século XVII, ódio no povo significa ódio entre o povo; divide os súditos e destrói a tão almejada e desejada paz.
Vós, com Vossa vasta cultura de cavalaria, certamente já lestes um pouco de minha história contada por um tal Miguel de Cervantes, um de meus conterrâneos contemporâneos, que conhecia o verdadeiro valor dos cavaleiros andantes. Vossa excelência sabe, portanto, quem Vos fala e com quem Vós falais!
Vossa Excelência não é só presidente da bolha olavista, evangélica, pecuarista ou da bolha da bala. Vossa Excelência é agora Presidente da República Federativa do Brasil. Vossa Excelência é agora presidente de todos os brasileiros, e não somente dos que Vos elegeram ou dos que Vos apoiam.
Em minhas andanças de cavaleiro pelo mundo já vi muitas tribos, reinos e países colapsarem em guerras civis ou em guerras religiosas por sua divisão. Não deixe isso acontecer com Vosso povo! A paz é possível e desejável. A paz entre seu povo deve ser o objetivo de um grande estadista, principalmente de um presidente que se diz terrivelmente cristão, uma religião que prega o amor ao próximo como a si mesmo. Eu e o Freud achamos isso impossível, mas… Vós, que acreditais que isso é possível, lute por isso! Para ter paz em Vosso reino e em Vosso reinado, busque o apoio de todos! Apoie todos! Afinal, todos são Vossos súditos, e Vós sois a autoridade máxima de todos
Ah! E não permitais que outros, em Vosso nome, dividam o Vosso povo! Mesmo contra Vossa natureza, às vezes sejais rude! Não vai ser difícil! Afinal, Vossa Excelência foi treinado para matar! É a velha dialética cultura/natureza!
O Sancho me pediu para dizer a Vossa Excelência que quem divide para reinar não reina um reino, reina sobre um reino.
Rui Iwersen, sob licença póstuma imaginária de Miguel de Cervantes Zaavedra.
Matéria editada originalmente nesta página em 20 de julho de 2019 e reeditada em 22 de setembro de 2022.
Freud Explica nº 53
A Guerra nº 17
A guerra rompe todos os laços de comunidade entre os povos em luta e ameaça deixar uma amargura por muito tempo
A guerra na qual não queríamos acreditar eclodiu e trouxe a desilusão. Não é apenas mais sangrenta e com mais perdas que qualquer uma das guerras anteriores, como consequência das armas poderosamente aperfeiçoadas de ataque e defesa, mas também pelo menos tão cruel, amargurada e implacável quanto qualquer outra anterior.
Ela descarta todas as restrições com as quais as pessoas se comprometeram em tempos de paz, o que tem sido chamado de Direito Internacional, não reconhece as prerrogativas do ferido e do médico, a distinção entre a parte pacífica e a combatente da população, tampouco as reinvindicações de propriedade privada.
Com uma fúria cega, derruba tudo o que está no caminho, como se não devesse haver futuro nem paz entre os seres humanos depois dela. Rompe todos os laços de comunidade entre os povos em luta e ameaça deixar uma amargura que tornará impossível reconectá-los por muito tempo.
Sigmund Freud, Tempos de guerra e de morte, 1915, Editora Nova Fronteira, RJ, 2021, página 19; foto: Fatos Militares (1ª guerra mundial)
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Freud Explica nº 52
A Guerra nº 16
Dos europeus se esperava que soubessem resolver por outros caminhos divergências e conflitos de interesses
Das grandes nações da raça branca que dominam o mundo, às quais coube a liderança do gênero humano, conhecidas por se ocuparem com o cuidado em relação aos interesses mundiais, e cujas criações são os progressos técnicos no domínio da natureza assim como os valores culturais artísticos e científicos; desses povos se esperava que soubessem resolver por outros caminhos divergências e conflitos de interesses.
Sigmund Freud, Tempos de guerra e de morte, 1915, Editora Nova Fronteira, RJ, 2021, página 15; foto: Conhecimento Científico (1ª guerra mundial)
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Freud Explica nº 51
A Guerra nº 15
Nunca um evento destruiu tanto dos preciosos bens comuns da humanidade
Enredados pelo vórtice deste tempo de guerra, informados de modo unilateral, sem a distância das grandes mudanças que já ocorreram ou estão começando a ocorrer e sem qualquer previsão do futuro que se molda, ficamos confusos com o significado das impressões que se impõem a nós e o valor dos julgamentos que formamos.
Quer nos parecer que nunca um evento destruiu tanto dos preciosos bens comuns da humanidade, confundiu tantas das mais esclarecidas inteligências, degradou tão fundamentalmente o que havia de elevado. Até mesmo a ciência perdeu sua imparcialidade desapaixonada; seus servos profundamente amargurados procuram tirar-lhes as armas para contribuir na luta contra o inimigo.
Sigmund Freud, Tempos de guerra e de morte, 1915, Editora Nova Fronteira, RJ, 2021, página 13; foto: Jornal Opção (1ª guerra mundial)
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Freud Explica nº 50
A Guerra nº 14
Tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra
Último número desta série baseado no livro Por que a guerra? de Freud e Einstein. Os próximos números da série serão baseados em outros livros psico-sociais de Freud em que ele aborda o tema da guerra.
(…) nós os pacifistas, temos uma intolerância constitucional à guerra, digamos, uma idiossincrasia exacerbada no mais alto grau. Realmente, parece que o rebaixamento dos padrões estéticos na guerra desempenha um papel dificilmente menor em nossa revolta do que as suas crueldades.
E quanto tempo teremos que esperar até que o restante da humanidade também se torne pacifista? Não há como dizê-lo. Mas pode não ser utópico esperar que esses dois fatores, a atitude cultural e o justificado medo das consequências de uma guerra futura, venham a resultar, dentro de um tempo previsível, em que se ponha um término à ameaça de guerra.
Por quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos adivinhar. Mas uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra.
Einstein e Freud, Por que a Guerra?, 1932-1933; Edição Standard Brasileira das Obras de Freud, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, páginas 258 e 259 (pg. 16 e 17 do artigo original). Foto: UOL Notícias (guerra russa na Ucrânia; Kiev).
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Dia Mundial da Saúde mental, Dia Nacional de Luta Contra a Violência à Mulher e Dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos
Dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos
Dia Mundial da Saúde Mental
Dia Nacional de Luta Contra a Violência à Mulher
O dia 10 de outubro foi escolhido para celebrar esta data porque foi em 10 de outubro de 1980 que um movimento de mulheres se reuniu nas escadarias do Teatro Municipal, em São Paulo, para iniciar um protesto contra o aumento de crimes de gênero no Brasil (hoje conhecidos como feminicídio, quando uma mulher é morta apenas por ser mulher).
Fonte: Calendário Brasil
Para queixas, disque 180
Fonte: https://gaianet.com/calendario-ecologico/
Freud Explica nº 49
A Guerra nº 13
A guerra se constitui na mais óbvia oposição à atitude psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização
As modificações psíquicas que acompanham o processo de civilização são notórias e inequívocas. Consistem num progressivo deslocamento dos fins instintuais e numa limitação imposta aos impulsos instintuais. Sensações que para os nossos ancestrais eram agradáveis, tornaram-se indiferentes ou até mesmo intoleráveis para nós; há motivos orgânicos para as modificações em nossos ideais éticos e estéticos.
Dentre as características psicológicas da civilização, duas aparecem como a mais importantes: o fortalecimento do intelecto, que está começando a governar a vida instintual, e a internalização dos impulsos agressivos com todas as suas consequentes vantagens e perigos.
Ora, a guerra se constitui na mais óbvia oposição à atitude psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização, e por esse motivo não podemos evitar de nos rebelar contra ela; simplesmente não podemos mais nos conformar com ela. Isto não é apenas um repúdio intelectual e emocional; nós os pacifistas, temos uma intolerância constitucional à guerra, digamos, uma idiossincrasia exacerbada no mais alto grau. Realmente, parece que o rebaixamento dos padrões estéticos na guerra desempenha um papel dificilmente menor em nossa revolta do que as suas crueldades.
Einstein e Freud, Por que a Guerra?, 1932-1933; Edição Standard Brasileira das Obras de Freud, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, página 258 (pg. 16 do artigo original). Foto: Folha – UOL (guerra russa na Ucrânia).
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Mensagem quixotesca nº 5
Mensagem ao Presidente da República Federativa do Brasil
Digníssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil
Com humildade me dirijo novamente a Vossa Excelência com o objetivo único de Vos ajudar a melhor exercer Vosso poder sobre Vosso país e sobre Vosso povo. Com este objetivo dou-vos um novo conselho: Não fortaleça o ódio entre Vossos súditos! Não divida o Vosso povo! Una o Vosso povo! Como tenho visto desde o século XVII, ódio no povo significa ódio entre o povo; divide os súditos e destrói a tão almejada e desejada paz.
Vós, com Vossa vasta cultura de cavalaria, certamente já lestes um pouco de minha história contada por um tal Miguel de Cervantes, um de meus conterrâneos contemporâneos, que conhecia o verdadeiro valor dos cavaleiros andantes. Vossa excelência sabe, portanto, quem Vos fala e com quem Vós falais!
Vossa Excelência não é só presidente da bolha olavista, evangélica, pecuarista ou da bolha da bala. Vossa Excelência é agora Presidente da República Federativa do Brasil. Vossa Excelência é agora presidente de todos os brasileiros, e não somente dos que Vos elegeram ou dos que Vos apoiam.
Em minhas andanças de cavaleiro pelo mundo já vi muitas tribos, reinos e países colapsarem em guerras civis ou em guerras religiosas por sua divisão. Não deixe isso acontecer com Vosso povo! A paz é possível e desejável. A paz entre seu povo deve ser o objetivo de um grande estadista, principalmente de um presidente que se diz terrivelmente cristão, uma religião que prega o amor ao próximo como a si mesmo. Eu e o Freud achamos isso impossível, mas… Vós, que acreditais que isso é possível, lute por isso! Para ter paz em Vosso reino e em Vosso reinado, busque o apoio de todos! Apoie todos! Afinal, todos são Vossos súditos, e Vós sois a autoridade máxima de todos
Ah! E não permitais que outros, em Vosso nome, dividam o Vosso povo! Mesmo contra Vossa natureza, às vezes sejais rude! Não vai ser difícil! Afinal, Vossa Excelência foi treinado para matar! É a velha dialética cultura/natureza!
O Sancho me pediu para dizer a Vossa Excelência que quem divide para reinar não reina um reino, reina sobre um reino.
Rui Iwersen, sob licença póstuma imaginária de Miguel de Cervantes Zaavedra.
Matéria editada originalmente em 20 de julho de 2019
Freud Explica nº 48
A Guerra nº 12
Uma guerra futura poderia envolver o extermínio de um dos antagonistas ou de ambos
Outras razões mais [para sermos pacifistas] poderiam ser apresentadas, como a de que, na sua forma atual, a guerra já não é mais uma oportunidade de atingir os velhos ideais de heroísmo, e a de que, devido ao aperfeiçoamento dos instrumentos de destruição, uma guerra futura poderia envolver o extermínio de um dos antagonistas ou, quem sabe, de ambos. Tudo isso é verdadeiro, e tão incontestavelmente verdadeiro, que não se pode senão sentir perplexidade ante o fato de a guerra ainda não ter sido unanimemente repudiada.
Sem dúvida, é possível o debate em torno de alguns desses pontos. Pode-se indagar se uma comunidade não deveria ter o direito de dispor da vida dos indivíduos; nem toda guerra é passível de condenação em igual medida; de vez que existem países e nações que estão preparados para a destruição impiedosa de outros, esses outros devem ser armados para a guerra. Mas não me deterei em nenhum desses aspectos; não constituem aquilo que o senhor deseja examinar comigo, e tenho em mente algo diverso.
Penso que a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos. E sendo assim, temos dificuldades em encontrar argumentos que justifiquem nossa atitude.
Einstein e Freud, Por que a Guerra?, 1932-1933; Edição Standard Brasileira das Obras de Freud, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, página 257 (pg. 15 do artigo original). Foto: BBC (guerra na Ucrânia)
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Freud Explica nº 47
A Guerra nº 11
Por que nos revoltamos contra a guerra?
Por que o senhor [Albert Einstein], eu [Sigmund Freud] e tantas outras pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra? Por que não aceitamos como mais uma das calamidades da vida?
Afinal, parece ser uma coisa muito natural, parece ter uma base biológica e ser dificilmente evitável na prática. Não há motivo para se surpreender com o fato de eu levantar esta questão. Para o propósito de uma investigação como esta, poder-se-ia, talvez, permitir-se usar uma máscara de suposto alheamento.
A resposta à minha pergunta será a de que reagimos à guerra dessa maneira, porque toda pessoa tem o direito à sua própria vida, porque a guerra põe um término a vidas plenas de esperanças, porque conduz os homens individualmente a situações humilhantes, porque os compele, contra a sua vontade, a matar outros homens e porque destrói objetos materiais preciosos, produzidos pelo trabalho da humanidade.
Einstein e Freud, Por que a Guerra?, 1932-1933; Edição Standard Brasileira das Obras de Freud, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, páginas 256 e 257 (pg. 15 do artigo original). Foto: CNN Brasil
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Freud Explica nº 46
A Guerra nº 10
Tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens deve atuar contra a guerra
Nossa teoria mitológica dos instintos facilita-nos encontrar a formula para métodos indiretos de combater a guerra. Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista, Eros. Tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens deve atuar contra a guerra. (…)
A situação ideal, naturalmente, seria a comunidade humana que tivesse subordinado sua vida instintual ao domínio da razão. Nada mais poderia unir os homens de forma tão completa e firme, ainda que entre eles não houvesse vínculos emocionais.
Sigmund Freud
Einstein e Freud, Por que a Guerra?, 1932-1933; Edição Standard Brasileira das Obras de Freud, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, páginas 255 e 256 (pg. 14 do artigo original). Foto: CNN Brasil, Ucrânia
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Freud Explica nº 45
A Guerra nº 9
Quando os seres humanos são incitados à guerra há certamente entre eles o desejo de agressão e destruição
De forma que, quando os seres humanos são incitados à guerra, podem ter toda uma gama de motivos para se deixarem levar (…) Entre eles está certamente o desejo de agressão e destruição: as incontáveis crueldades que encontramos na história e em nossa vida de todos os dias atestam a sua existência e sua força.
A satisfação desses impulsos destrutivos naturalmente é facilitada por sua mistura com outros motivos de natureza erótica ou idealista. Quando lemos sobre as atrocidades do passado, amiúde é como se os motivos idealistas servissem apenas de escusa para os desejos destrutivos; e, às vezes – por exemplo, no caso das crueldades da Inquisição – é como se os motivos idealistas tivessem assomado a um primeiro plano na consciência, enquanto os destrutivos lhes emprestassem um reforço inconsciente. Ambos podem ser verdadeiros.
Sigmund Freud
Einstein e Freud; Por que a Guerra?; 1932-1933; Edição Standard Brasileira das Obras de Freud; Imago Editora; Rio de Janeiro; 1974; página 253 (pg. 12 no artigo original); foto: DW – 4º mês de guerra na Ucrânia
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Freud Explica nº 44
A Guerra nº 8
Os resultados das guerras de conquista são geralmente de curta duração
Desse modo, as conquistas dos romanos deram aos países próximos ao Mediterrâneo a inestimável pax romana, e a ambição dos reis franceses de ampliar os seus domínios criou uma França pacificamente unida e florescente. Por paradoxal que possa parecer, deve-se admitir que a guerra poderia ser um meio nada inadequado de estabelecer o reino ansiosamente desejado de paz ‘perene’, pois está em condições de criar as grandes unidades dentro das quais um poderoso governo central torna impossíveis outras guerras.
Contudo, ela falha quanto a esse propósito, pois os resultados da conquista são geralmente de curta duração: as unidades recentemente criadas esfacelam-se novamente, no mais das vezes devido a uma falta de coesão entre as partes que foram unidas pela violência.
Ademais, até hoje as unificações criadas pela conquista, embora de extensão considerável, foram apenas parciais, e os conflitos entre elas ensejaram, mais do que nunca, soluções violentas.
Einstein e Freud, Por que a Guerra?, 1932-1933; Edição Standard Brasileira das Obras de Freud, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, página 250 (pg. 8 no original); foto: Bloomberg Linea – 100 dias de guerra na Ucrânia.
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Freud Explica nº 43
A Guerra nº 7
É impossível estabelecer qualquer julgamento geral das guerras de conquista
Guerras dessa espécie terminam ou pelo saque ou pelo completo aniquilamento e conquista de uma das partes. É impossível estabelecer qualquer julgamento geral das guerras de conquista. Algumas, como as empreendidas pelos mongóis e pelos turcos, não trouxeram senão malefícios.
Outras, pelo contrário, contribuíram para a transformação da violência em lei, ao estabelecerem unidades maiores, dentro das quais o uso da violência se tornou impossível e nas quais um novo sistema de leis solucionou os conflitos. Desse modo, as conquistas dos romanos deram aos países próximos ao Mediterrâneo a inestimável pax romana, e a ambição dos reis franceses de ampliar os seus domínios criou uma França pacificamente unida e florescente.
Einstein e Freud, Por que a Guerra?, 1932-1933; Edição Standard Brasileira das Obras de Freud, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, páginas 249 e 250 (7 e 8 no original); foto: Pragmatismo Político, invasão da Ucrânia pela Rússia.
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Freud explica nº 42
A Guerra nº 6
A história humana revela uma série infindável de conflitos
Vemos, pois, que a solução violenta de conflitos de interesses não é evitada sequer dentro de uma comunidade. As necessidades cotidianas e os interesses comuns, inevitáveis ali onde pessoas vivem juntas num lugar, tendem, contudo, a proporcionar a essas lutas uma conclusão rápida, e, sob tais condições, existe uma crescente probabilidade de se encontrar uma solução pacífica.
Outrossim, um rápido olhar pela história da raça humana revela uma série infindável de conflitos entre uma comunidade e outra, ou diversas outras, entre unidades maiores e menores – entre cidades, províncias, raças, nações, impérios -, que quase sempre se formaram pela força das armas. Guerras dessa espécie terminam ou pelo saque ou pelo completo aniquilamento e conquista de uma das partes.
Einstein e Freud, Por que a Guerra?, 1932-1933; Edição Standard Brasileira das Obras de Freud, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, página 249 (pg. 7 no original); foto: Agência Brasil – EBC, Guerra russa na Ucrânia.
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Freud Explica nº 41
A Guerra nº 5
O Instinto de morte torna-se instinto destrutivo quando é dirigido para fora
A pedido de Einstein e da Liga das Nações (a atual ONU) Freud explica a guerra.
O Instinto de morte torna-se instinto destrutivo quando, com o auxilio de órgãos especiais, é dirigido para fora, para objetos. O organismo preserva sua própria vida, por assim dizer, destruindo uma vida alheia.
Uma parte do instinto de morte, contudo, continua atuante dentro do organismo, e temos procurado atribuir numerosos fenômenos normais e patológicos a essa internalização do instinto de destruição. Foi-nos até mesmo imputada a culpa pela heresia de atribuir a origem da consciência a esse desvio da agressividade para dentro. O senhor perceberá que não é irrelevante se esse processo vai longe demais: é positivamente insano.
Por outro lado, se essas forças se voltam para a destruição no mundo externo, o organismo se aliviará e o efeito deve ser benéfico [para o individuo, ou melhor, para o ego do individuo, como diria Freud].
Einstein e Freud, Por que a Guerra?, 1932-1933; Edição Standard Brasileira das Obras de Freud, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, página 254 (12 no artigo original); foto: Correio Braziliense, Ucrânia.
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Daqui há 20 anos o mundo vai ser profundamente diferente
Daqui há 20 anos, acredito que o mundo vai ser profundamente diferente, por vários motivos. As mudanças climáticas, por exemplo, já estão afetando de forma muito séria o planeta como um todo; a população está crescendo e temos de pensar em como alimentar e gerar energia para todos.
Tem também a questão da inteligência artificial e do mercado de trabalho: nós vemos uma automação cada vez maior das linhas de produção.
Como consequência, certas profissões podem deixar de existir, porque esse processo vai acontecer em um ritmo tão rápido que não vai dar tempo de treinar as pessoas para novas funções. E como vamos lidar com esse cenário? Todas essas questões me preocupam.
Marcelo Gleiser, Nenhuma teoria criada pelo homem é perfeita, Revista Galileu, Edição 337, agosto de 2019, página 55; foto: Alkasoft
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Freud Explica
A Guerra nº 4
A guerra se constitui na mais óbvia oposição à atividade psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização
A pedido de Einstein e da Liga das Nações (a atual ONU) Freud explica a guerra.
Prezado Professor Einstein
(…) As modificações psíquicas que acompanham o processo de civilização são notórias e inequívocas. Consistem num progressivo deslocamento dos fins instintuais e numa limitação imposta aos impulsos instintuais. (…) Dentre as características psicológicas da civilização, duas aparecem como as mais importantes: o fortalecimento do intelecto, que está começando a governar a vida instintual, e a internalização dos impulsos agressivos com todas as suas consequências e perigos. Ora, a guerra se constitui na mais óbvia oposição à atividade psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização.
Cordialmente, Sigmund Freud
Einstein e Freud, Por que a Guerra?, 1932-1933; Edição Standard Brasileira das Obras de Freud, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, página 258 (pg. 16 do artigo original); foto: Guerra do Vietnã.
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Matéria editada originalmente nesta página dia 14 de junho de 2015.
Freud Explica
A Guerra nº 3
O Instinto de morte torna-se instinto destrutivo quando é dirigido para fora, para objetos.
A pedido de Einstein e da Liga das Nações (a atual ONU) Freud explica as razões psicológicas das guerras humanas.
Presado Professor Einstein
(…) Receio que eu possa estar abusando do seu interesse, que, afinal, se volta para a prevenção da guerra e não para nossas teorias. Gostaria, não obstante, de deter-me um pouco mais em nosso instinto destrutivo, cuja popularidade não é de modo algum igual á sua importância.
Como consequência de um pouco de especulação, pudemos supor que esse instinto está em atividade em toda criatura viva e procura leva-la ao aniquilamento, reduzir a vida à condição original de matéria inanimada. Portanto, merece com toda seriedade, ser denominado instinto de morte, ao passo que os instintos eróticos representam o esforço de viver.
O Instinto de morte torna-se instinto destrutivo quando, com o auxilio de órgãos especiais, é dirigido para fora, para objetos. O organismo preserva sua própria vida, por assim dizer, destruindo uma vida alheia. (…)
Sigmund Freud
Einstein e Freud; Por que a Guerra? (1932-1933); Edição Standard Brasileira das Obras de Freud; Imago Editora; Rio de Janeiro; 1974; páginas 253 e 254 (11 e 12 no original); foto: guerra na Síria
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Matéria editada originalmente nesta página dia 28 de janeiro de 2015.
Freud Explica
A Guerra nº 2
Quando os seres humanos são incitados à guerra, entre eles está certamente o desejo de agressão e destruição
A pedido de Einstein e da Liga das Nações (a atual ONU) Freud explica a guerra, como vemos no diálogo abaixo.
Prezado professor Freud
Para concluir: Até aqui somente falei das guerras entre nações, aquelas que se conhecem como conflitos internacionais. Estou, porém, bem consciente de que o instinto agressivo opera sob outras formas e em outras circunstâncias. (Penso nas guerras civis, por exemplo, devidas à intolerância religiosa, em tempos precedentes, hoje em dia, contudo, devidas a fatores sociais; ademais, também nas perseguições a minorias raciais.) (…)
Sei que nos escritos do senhor podemos encontrar respostas, explícitas ou implícitas, a todos os aspectos desse problema urgente e absorvente. Mas seria da maior importância para nós todos que o senhor apresentasse o problema da paz mundial sob o enfoque das suas mais recentes descobertas, pois uma tal apresentação bem poderia demarcar o caminho para novos e frutíferos métodos de ação. (…)
A. Einstein.
Prezado Professor Einstein
De acordo com nossa hipótese, os instintos humanos são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a preservar e a unir – que denominamos ‘eróticos’, exatamente no mesmo sentido que Platão usa a palavra ‘Eros’ (…) -; e aqueles que tendem a destruir e matar, os quais agrupamos como instinto agressivo ou destrutivo. (…)
Muito raramente uma ação é obra de um impulso instintual único (que deve estar composto de Eros e destrutividade). A fim de tornar possível uma ação, há que haver, via de regra, uma combinação desses motivos compostos. (…) De forma que, quando os seres humanos são incitados à guerra, podem ter toda uma gama de motivos para se deixarem levar (…) Entre eles está certamente o desejo de agressão e destruição: as incontáveis crueldades que encontramos na história e em nossa vida de todos os dias atestam a sua existência e sua força.
Sigmund Freud
Einstein e Freud; Por que a Guerra?; 1932-1933; Edição Standard Brasileira das Obras de Freud; Imago Editora; Rio de Janeiro; 1974; páginas 244 (Einstein) (4 no original), 252 e 253 (Freud) (10 e 11 no original); foto: menina do Napalm, guerra do Vietnã
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Matéria editada originalmente nesta página dia 30 de outubro de 2014
Freud Explica
A Guerra nº 1
Os conflitos de interesses entre os homens são resolvidos pelo uso da violência
Triste e preocupado com a guerra da Rússia contra a Ucrânia, inicio a reedição do quadro Freud Explica – a Guerra, onde apresento pequenas sínteses das referências de Freud sobre a guerra. Inicio com o diálogo entre Einstein e Freud sobre o tema.
Prezado Professor Freud
A proposta da Liga das Nações e de seu Instituto para a Cooperação Intelectual, em Paris, de que eu convidasse uma pessoa, de minha própria escolha, para um franco intercâmbio de pontos de vista sobre algum problema que eu poderia selecionar, oferece-me excelente oportunidade de conferenciar com o senhor a respeito de uma questão que, da maneira como as coisas estão, parece ser o mais urgente de todos os problemas que a civilização tem de enfrentar. Este é o problema: Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra? (…)
A. Einstein.
Prezado Professor Einstein
O senhor começou com a relação entre o direito e o poder. Não se pode duvidar de que seja este o ponto de partida correto de nossa investigação. Mas, permita-me substituir a palavra ‘poder’ pela palavra mais nua e crua ‘violência’? (…) É, pois, um princípio geral que os conflitos de interesses entre os homens são resolvidos pelo uso da violência. É isto o que se passa em todo o reino animal, do qual o homem não tem motivo por que se excluir. No caso do homem, sem dúvida ocorrem também conflitos de opinião que podem chegar a atingir as mais raras nuanças da abstração e que parecem exigir alguma outra técnica para sua solução. Esta é, contudo, uma complicação a mais. (…)
De acordo com nossa hipótese, os instintos humanos são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a preservar e a unir – que denominamos ‘eróticos’, exatamente no mesmo sentido em que Platão usa a palavra ‘Eros’ em seu Symposium (…) -; e aqueles que tendem a destruir e matar, os quais agrupamos como instinto agressivo ou destrutivo. (…)
Sigmund Freud
Einstein e Freud, Por que a Guerra?, 1932-1933; Edição Standard Brasileira das Obras de Freud, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, páginas 241, 246 e 252 (páginas 1, 5 e 10 no artigo original)
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Matéria editada originalmente nesta página dia 16 de outubro de 2014
Freud Explica
A Religião nº 10
As ideias religiosas surgiram da mesma necessidade de que se originaram todas as outras realizações da civilização
Tentei demonstrar que as ideias religiosas surgiram da mesma necessidade de que se originaram todas as outras realizações da civilização, ou seja, da necessidade de defesa contra a força esmagadoramente superior da natureza.
A isso acrescentou-se um segundo motivo: o impulso de retificar as deficiências da civilização, que se faziam sentir penosamente. Ademais, é especialmente apropriado dizer que a civilização fornece ao indivíduo essas ideias, porque ele já as encontra lá; são-lhe presenteadas já prontas, e ele não seria capaz de descobri-las por si mesmo.
Aquilo em que ele está ingressando constitui a herança de muitas gerações, e ele a assume tal como faz com a tabuada de multiplicar, a geometria, e outras coisas semelhantes.
Sigmund Freud, O Futuro de uma Ilusão, 1927, Imago Editora, 1974, página 33
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Matéria editada originalmente nesta página dia 26 de abril de 2015
Freud Explica
A Religião nº 9
A expiação para com o pai pelo ato primevo culposo
Na doutrina cristã, assim, os homens estavam reconhecendo da maneira mais indisfarçada o ato primevo culposo, uma vez que encontraram a mais plena expiação para ele no sacrifício desse filho único. A expiação para com o pai foi ainda mais completa visto que o sacrifício se fez acompanhar de uma renúncia total às mulheres, por causa de quem a rebelião contra aquele fora iniciada.
Mas, nesse ponto, a inexorável lei psicológica da ambivalência apareceu. O próprio ato pelo qual o filho oferecia a maior expiação possível ao pai conduzia-o, ao mesmo tempo, à realização de seus desejos contra o pai. Ele próprio tornava-se Deus, ao lado, ou, mais corretamente, em lugar do pai. (…)
Na tragédia grega, o tema especial de representação eram os sofrimentos do bode divino, Dionísio, e a lamentação dos bodes seus seguidores que se identificavam com ele. Assim sendo, é fácil compreender como o drama, que tinha se extinguido, voltou a brilhar com nova vida na Idade Média, em torno da Paixão de Cristo.
Sigmund Freud, Totem e Tabu [1912-13], Imago Editora Ltda, Rio de Janeiro, 1974, páginas 177 e 179
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Matéria editada originalmente nesta página dia 05 de abril de 2015
Freud explica
A religião nº 8
O objeto do ato de sacrifício sempre foi o mesmo, ou seja, o pai
Os cerimoniais de sacrifício humano, realizados nas mais diferentes partes do globo habitado, deixam pouca dúvida de que as vítimas encontram seu fim como representantes da divindade e esses ritos sacrificatórios podem ser remontados a épocas antigas, com uma efígie ou boneco inanimado tomando o lugar do ser humano vivo. (…)
Smith (1894) reconhece o fato de que o objeto do ato de sacrifício sempre foi o mesmo, a saber, aquilo que é hoje adorado como Deus, ou seja, o pai. O problema da relação entre o sacrifício animal e o sacrifício humano admite assim uma solução simples.
O sacrifício animal original já constituía um substituto de um sacrifício humano – a morte cerimonial do pai; assim sendo, quando o representante paterno mais uma vez reassumiu a figura humana, o sacrifício animal também podia ser retransformado num sacrifício humano. (…)
Sigmund Freud, Totem e Tabu, 1913; Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974; página 174; foto: Rodrigo Peñaloza – Medium
Rui Iwersen, médico psiquiatra
Matéria editada originalmente nesta página dia 18 de abril de 2014
Freud explica
A religião nº 7
A competição entre “divindades” na antiguidade
“Quando o cristianismo pela primeira vez penetrou o mundo antigo, defrontou-se com a competição da religião de Mitras e, durante algum tempo, houve dúvida em relação a qual das duas divindades alcançaria a vitória. Não obstante o halo de luz que rodeia a sua forma, o jovem deus persa continua a ser obscuro para nós.
Podemos talvez deduzir das esculturas de Mitras matando um touro que ele representava um filho sozinho no sacrifício do pai, redimindo assim os irmãos do ônus de cumplicidade no ato.
Havia um método alternativo de mitigar a culpa e ele foi adotado pela primeira vez por Cristo. Sacrificou a própria vida e assim redimiu do pecado original o conjunto de irmãos.”
Sigmund Freud, Totem e Tabu, 1913; Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974; página 176
Rui Iwersen
Matéria editada originalmente nesta página dia 25 de dezembro de 2013
Freud explica
A religião nº 6
O significado da natureza do sacrifício
“Esse pão, feito por Maria, ganho por José, alimentou o Filho de Deus; José sustentou no coração do Salvador, o sangue que Ele devia derramar por nós. Na eucaristia, nós recebemos a carne e o sangue de Cristo”.
Cassiano R. Azevedo; José – Referencial para o homem de hoje; Edições Shalom, Fortaleza, 2008, pg. 87
Freud
“A despeito da proibição que protegia a vida dos animais sagrados na qualidade de companheiros de clã, surgiu a necessidade de matar um deles de tempos em tempos, em comunhão solene, e de dividir sua carne e sangue entre os membros do clã. Os motivos que levaram a esse ato revelam o significado mais profundo da natureza do sacrifício.
Já sabemos como, em épocas posteriores, sempre que o alimento é comido em comum, a participação na mesma substância estabelece um laço sagrado entre aqueles que a consomem, quando o alimento penetrou em seus corpos. Nos tempos antigos, esse resultado parece só ter sido efetivado pela participação na substância de uma vítima sacrossanta. (…)
Este elo ou vínculo nada mais é que a vida do animal sacrificatório, a qual reside em sua carne e seu sangue, sendo distribuída entre todos os participantes na refeição sacrificatória.”
Sigmund Freud, Totem e Tabu, 1913; Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974; página 159
Rui Iwersen
Matéria editada originalmente nesta página dia 12 de outubro de 2013
Freud explica
A religião nº 5
A oferenda de bebida consistia originalmente no sangue da vítima animal
“Reminiscências linguísticas comprovam que a parte do sacrifício atribuída ao deus era a princípio considerada como sendo, literalmente, o seu alimento. À medida que a natureza dos deuses tornava-se progressivamente menos material, essa concepção transformou-se num empecilho e foi evitada, atribuindo-se à deidade apenas a parte líquida da refeição.
Posteriormente, o uso do fogo, que fez com que a carne do sacrifício sobre os altares se elevasse em fumaça, forneceu um método de lidar com o alimento humano mais apropriado à natureza divina. A oferenda de bebida consistia originalmente no sangue da vítima animal, substituído mais tarde por vinho. Nos tempos antigos, o vinho era considerado ‘o sangue da uva’ e foi assim descrito por poetas modernos.” [Robertson Smith, 1894, páginas 224, 229 e 230]
Sigmund Freud, Totem e Tabu, 1913; Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974; página 155; foto: Matriz Santo Estevão de Ituporanga
Matéria editada originalmente nesta página dia 16 de setembro de 2013
Rui Iwersen
Freud explica
A religião nº 4
A magia e o animismo prepararam o caminho para a criação de uma religião
Os ovos de Santa Clara que o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, encaminhou para as Irmãs Clarissas do Mosteiro da Gávea. Mais cedo o papa Francisco havia recomendado que ele colocasse ovos aos pés de Santa Clara para que a chuva parasse.
Nestes últimos exemplos, como em tantos outros do funcionamento da magia, o elemento da distância é desprezado; em outras palavras, a telepatia é admitida como certa. (…)
Se desejo que chova, tenho apenas de efetuar algo que se assemelhe à chuva ou faça lembra-la. Numa fase posterior da civilização, em vez dessa chuva mágica, serão feitas procissões até um templo e preces pedindo chuva serão dirigidas à divindade que nele habita. (…)
Enquanto a magia ainda reserva a onipotência apenas para os pensamentos, o animismo transmite um pouco dela para os espíritos, preparando assim o caminho para a criação de uma religião. (…)
Sigmund Freud, Totem e Tabu, 1913; Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974; páginas 97 e 109; foto: BOL Fotos
Rui Iwersen
Matéria editada originalmente nesta página dia 31 de julho de 2013
24 de julho de 2021
Freud explica
A religião nº 3
Os motivos que conduziram os homens a praticar a magia são os desejos humanos
“Não é de se supor que os homens foram inspirados a criar seu primeiro sistema do universo por pura curiosidade especulativa. A necessidade prática de controlar o mundo que os rodeava deve ter desempenhado seu papel.” (…)
“É fácil perceber os motivos que conduziram os homens a praticar a magia: são os desejos humanos. Tudo o que precisamos admitir é que o homem primitivo tinha uma crença imensa no poder de seus desejos. A razão básica porque o que ele começa a fazer por meios mágicos vem a acontecer é, em última análise, simplesmente que o deseja. De início, portanto, a ênfase é colocada apenas no seu desejo.” (…)
“Para resumir, pode-se dizer, então, que o princípio que dirige a magia, a técnica da modalidade animista de pensamento, é o princípio da ‘onipotência de pensamentos’.” (…)
“Se estivermos dispostos a aceitar a explicação oferecida da evolução da maneira do homem visualizar o universo – uma fase animista seguida de uma fase religiosa e esta, por sua vez, de uma fase científica – não será difícil acompanhar as vicissitudes da ‘onipotência de pensamentos’ através dessas diferentes fases. Na fase animista, os homens atribuem a onipotência a si mesmos. Na fase religiosa, transferem-na para os deuses, mas eles próprios não desistem dela totalmente, porque se reservam o poder de influenciar os deuses através de uma variedade de maneiras, de acordo com os seus desejos.
A visão científica do universo já não dá lugar à onipotência humana; os homens reconheceram a sua pequenez e submeteram-se resignadamente à morte e às outras necessidades da natureza.” (…)
Sigmund Freud, Totem e Tabu, 1913; Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974, páginas 94, 100, 102 e 105; foto: DarkBlog
Rui Iwersen
Matéria editada originalmente nesta página dia 21 de julho de 2013
Freud explica
A religião nº 2
A raça humana desenvolveu, no decurso das eras, três sistemas de pensamento: animista (ou mitológica), religiosa e científica
(…) O animismo [a doutrina de seres espirituais em geral] é um sistema de pensamento. Ele não fornece simplesmente uma explicação de um fenômeno específico, mas permite-me apreender todo o universo como uma unidade isolada, de um ponto de vista único. A raça humana, se seguirmos as autoridades no assunto, desenvolveu, no decurso das eras, três desses sistemas de pensamento – três grandes representações do universo: animista (ou mitológica), religiosa e científica. (…)
Ao examinar o fato de as mesmas ideias animistas haverem surgido entre os povos mais variados e em todos os períodos, Wundt declara que ‘elas constituem o produto psicológico necessário de uma consciência mitocriadora (…) e assim, neste sentido, o animismo primitivo deve ser encarado como a expressão espiritual do estado natural do homem’.
Com esses três estágios em mente [animismo, religião e ciência], pode-se dizer que o animismo em si mesmo não é ainda uma religião, mas contém os fundamentos sobre os quais as religiões posteriormente foram criadas.
Sigmund Freud, Totem e Tabu, 1913; Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974; páginas 93 e 94; foto: Enciclopédia Global
Matéria editada originalmente nesta página dia 18 de julho de 2013
Rui Iwersen
Em Defesa da Ciência nº 25
A crítica e o pensamento criativo
(…) A crítica é essencial para o pensamento criativo. Cada avanço na aquisição de conhecimento cresce a partir do questionamento e da negação de conceitos estabelecidos. Nenhum avanço no pensamento pode ser dado sem que haja transcendência e, portanto, mudança de compreensão ou de formulações anteriores.
Copérnico rejeitou o conceito de Ptolomeu de que a Terra era o centro do universo, e demonstrou que ela é um planeta girando em volta do Sol. Darwin negou a visão escolástica de que Deus criara cada espécie animal, resultando daí a teoria da evolução. Einstein rejeitou a aplicabilidade da física de Newton aos fenômenos astronômicos, apresentando a teoria da relatividade. A psicanálise não teria posto a descoberto os segredos do inconsciente se Freud não houvesse abalado as ideias aceitas sobre histeria.
Essas aquisições foram possíveis porque cada um desses homens tinha ideias próprias e a coragem de dizer “não”. A mente inquisidora é o intelecto cético de uma natureza ávida e curiosa. (…)
Alexander Lowen, Prazer – Uma abordagem criativa da vida, Círculo do Livro S.A., São Paulo, 1970, página 153; foto: Interdimensionais
Rui Iwersen
Edito a partir de hoje os 10 números do quadro “Freud explica – a religião” editados nesta página, e que serão seguidos por novas edições sobre o tema.
Freud explica
A religião nº 1
O tabu é mais antigo que os deuses e remonta a um período anterior à existência de qualquer espécie de religião
Wundt descreve o tabu como o código de leis não escrito mais antigo do homem. É suposição geral que o tabu é mais antigo que os deuses e remonta a um período anterior à existência de qualquer espécie de religião. (…)
A punição pela violação de um tabu era, sem dúvida, originalmente deixada a um agente interno automático: o próprio tabu violado se vingava. Quando, numa fase posterior, surgiram as ideias de deuses e espíritos, com os quais os tabus se associaram, esperava-se que a penalidade proviesse automaticamente do poder divino. (…)
Nem o medo nem os demônios podem ser considerados pela psicologia como as coisas mais primitivas, impenetráveis a qualquer tentativa de descobrimento de seus antecedentes. A coisa seria diferente se os demônios realmente existissem. Mas sabemos que, como os deuses, eles são criações da mente humana: foram feitos por algo e de algo.
Sigmund Freud, Totem e Tabu, 1913; Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, páginas 32, 34 e 38; foto: Maiores e Melhores
Matéria editada originalmente no dia 16 de julho de 2013
Rui Iwersen
Freud explica nº 40
A agressividade nº 22
O sentimento de culpa como expressão da ambivalência e da luta entre Eros e o instinto de morte
(…) Matar o pai* ou abster-se de matá-lo não é, realmente, a coisa decisiva. Em ambos os casos, todos estão fadados a sentir culpa, porque o sentimento de culpa é uma expressão tanto do conflito devido à ambivalência, quanto da eterna luta entre Eros e o instinto de destruição ou morte. Esse conflito é posto em ação tão logo os homens se defrontem com a tarefa de viverem juntos.
Enquanto a comunidade não assume outra forma que não seja a da família, o conflito está fadado a se expressar no complexo edipiano, a estabelecer a consciência e a criar o primeiro sentimento de culpa. Quando se faz uma tentativa para ampliar a comunidade, o mesmo conflito continua sob formas que dependem do passado; é fortalecido e resulta numa identificação adicional do sentimento de culpa.
Visto que a civilização obedece a um impulso erótico interno que leva os seres humanos a se unirem num grupo estreitamente ligado, ela só pode alcançar seu objetivo através de um crescente fortalecimento do sentimento de culpa. O que começou em relação ao pai é completado em relação ao grupo.
Se a civilização constitui o caminho necessário de desenvolvimento, da família à humanidade como um todo, então, em resultado do conflito inato surgido da ambivalência, da eterna luta entre as tendências de amor e de morte, acha-se a ele inextricavelmente ligado um aumento do sentimento de culpa, que talvez atinja alturas que o individuo considere difíceis de tolerar. (…)
Freud, Sigmund, 1930, O Mal-Estar na Civilização, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, páginas 94 e 95; foto: G1
* teoria exposta por Freud no livro Totem e Tabu de 1913
Rui Iwersen
Freud explica nº 39
A agressividade nº 21
A origem primeva do superego e do sentimento de culpa
(…) Mas, se o sentimento humano de culpa remonta à morte do pai primevo, trata-se, afinal de contas, de um caso de ‘remorso’. Por ventura não devemos supor que [nessa época] uma consciência e um sentimento de culpa, como pressupomos, já existiam antes daquele feito? Não há dúvida de que esse caso nos explicaria o segredo do sentimento de culpa e poria fim às nossas dificuldades. E acredito que o faz.
Esse remorso constitui o resultado da ambivalência primordial de sentimentos para com o pai. Seus filhos o odiavam, mas também o amavam. Depois que o ódio foi satisfeito pelo ato de agressão, o amor veio para o primeiro plano, no remorso dos filhos pelo ato. Criou o superego pela identificação com o pai; deu a esse agente o poder paterno, como uma punição pelo ato de agressão que haviam cometido contra aquele, e criou as restrições destinadas a impedir a repetição do ato. *
E, visto que a inclinação à agressividade contra o pai se repetiu nas gerações seguintes, o sentimento de culpa também persistiu, cada vez mais fortalecido por cada parcela de agressividade que era reprimida e transferida para o superego. Ora, penso eu, finalmente podemos apreender duas coisas de modo perfeitamente claro: o papel desempenhado pelo amor na origem da consciência e a fatal inevitabilidade do sentimento de culpa. (…)
Freud, Sigmund, 1930, O Mal-Estar na Civilização, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, página 94; foto: Catraca Livre
* teoria exposta por Freud no livro Totem e Tabu, de 1913
Rui Iwersen
Freud explica nº 38
A agressividade nº 20
A agressividade como obstáculo à civilização
(…) Que poderoso obstáculo à civilização a agressividade deve ser, se a defesa contra ela pode causar tanta infelicidade quanto a própria agressividade!
A ética “natural”, tal como é chamada, nada tem a oferecer aqui, exceto a satisfação narcísica de se poder pensar que se é melhor do que os outros. Nesse ponto, a ética baseada na religião introduz suas promessas de uma vida melhor depois da morte.
Enquanto, porém, a virtude não for recompensada aqui na Terra, a ética, imagino eu, pregará em vão. Acho também bastante certo que, nesse sentido, uma mudança real nas relações dos seres humanos com a propriedade seria de muito mais ajuda do que quaisquer ordens éticas (…)
Freud, Sigmund, 1930, O Mal-Estar na Civilização, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, página 106; foto: Só Escola
Rui Iwersen
Freud explica nº 37
A agressividade nº 19
O sentimento de culpa como expressão do medo da autoridade externa
(…) O medo desse agente crítico [o superego] (medo que está no fundo de todo relacionamento), a necessidade de punição, constitui uma manifestação instintiva por parte do ego, que se tornou masoquista sob a influência de um superego sádico; é, por assim dizer, uma parcela do instinto voltado para a destruição interna presente no ego, empregado para formar uma ligação erótica com o superego. Não devemos falar de consciência até que um superego se ache demonstravelmente presente.
Quanto ao sentimento de culpa, temos que admitir que existe antes do superego e, portanto, antes da consciência também. Nessa ocasião, ele é expressão imediata do medo da autoridade externa, um reconhecimento da tensão existente entre o ego e essa autoridade. É o derivado direto do conflito entre a necessidade do amor da autoridade e o impulso no sentido da satisfação instintiva, cuja inibição produz a inclinação para a agressão. (…)
Freud, Sigmund, 1930, O Mal-Estar na Civilização, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, página 99; foto: TelaVita
Rui Iwersen
Dia Mundial da Saúde Mental 2020
O Dia Mundial da Saúde Mental deste ano (10 de outubro) é celebrado em um momento em que nossas vidas diárias foram significativamente alteradas como consequência da pandemia de COVID-19. Os últimos meses trouxeram muitos desafios: para os profissionais de saúde, que prestam seus serviços em circunstâncias difíceis e vão trabalhar com medo de levar a COVID-19 para casa; aos alunos, que tiveram que se adaptar às aulas à distância, com pouco contato com professores e colegas e preocupados com o futuro; aos trabalhadores, cujos meios de subsistência estão ameaçados; ao grande número de pessoas presas na pobreza ou em ambientes humanitários frágeis com muito pouca proteção contra a COVID-19; e para pessoas com condições de saúde mental, muitas das quais estão ainda mais isoladas socialmente do que antes. Sem falar em como lidar a dor de perder um ente querido, às vezes sem poder se despedir.
As consequências econômicas da pandemia já estão sendo sentidas em todos os lugares, à medida que as empresas demitem funcionários na tentativa de salvar os negócios ou são forçadas a fechar totalmente.
Com base em emergências anteriores, espera-se que as necessidades de saúde mental e apoio psicossocial aumentem significativamente nos próximos meses e anos. Investir em programas nacionais e internacionais de saúde mental, que há anos não recebem recursos, é mais importante do que nunca.
Por isso, a campanha do Dia Mundial da Saúde Mental deste ano tem como objetivo aumentar os investimentos em favor da saúde mental.
Fonte: Organização Panamericana de Saúde (OPAS) e Organização Mundial de Saúde (OMS); foto: Revista Saúde
Matéria enviada pelo colaborador Jorge Fernando Schneider
Freud explica nº 36
A agressividade nº 18
A agressividade da autoridade e a renúncia instintiva na formação da consciência
(…) as más intenções são igualadas às más ações e daí surgem sentimento de culpa e necessidade de punição. A agressividade da consciência continua a agressividade da autoridade.
Até aqui, sem dúvida, as coisas são claras; mas onde é que isso deixa lugar para a influência reforçadora do infortúnio e para a extraordinária severidade da consciência nas pessoas melhores e mais dóceis? Já explicamos essas particularidades da consciência, mas provavelmente ainda temos a impressão de que essas explicações não atingem o fundo da questão e deixam ainda inexplicado um resíduo.
Aqui, por fim, surge uma ideia que pertence inteiramente à psicanálise, sendo estranha ao modo comum de pensar das pessoas. Essa ideia é de um tipo que nos capacita a compreender por que o tema geral estava fadado a nos parecer confuso e obscuro, pois nos diz que, de início, a consciência (ou, de modo mais correto, a ansiedade que depois se torna consciência) é, na verdade, a causa da renúncia instintiva, mas que, posteriormente, o relacionamento se inverte.
Toda renúncia ao instinto torna-se agora uma fonte dinâmica de consciência, e cada nova renúncia aumenta a severidade e a intolerância desta última. (…)
Freud, Sigmund, 1930, O Mal-Estar na Civilização, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, página 90; foto: VilaMulher
Rui Iwersen
Freud explica nº 35
A agressividade nº 17
Medo da autoridade externa e medo do superego
(…) Percebemos agora em que relação a renúncia ao instinto se acha com o sentimento de culpa. Originalmente, a renúncia ao instinto constituía o resultado do medo de uma autoridade externa: renunciava-se às próprias satisfações para não se perder o amor da autoridade. Se se efetuava essa renúncia, ficava-se, por assim dizer, quite com a autoridade e nenhum sentimento de culpa permaneceria.
Quanto ao medo do superego, porém, o caso é diferente. Aqui, a renúncia instintiva não basta, pois o desejo persiste e não pode ser escondido do superego. Assim, a despeito da renúncia efetuada, ocorre um sentimento de culpa. Isso representa uma grande desvantagem econômica na construção de um superego ou, como podemos dizer, na formação de uma consciência.
Aqui, a renúncia instintiva não possui mais um efeito completamente liberador; a continência virtuosa não é mais recompensada com a certeza do amor. Uma ameaça de infelicidade externa – perda de amor e castigo por parte da autoridade externa – foi permutada por uma permanente infelicidade interna, pela tensão do sentimento de culpa. (…)
Freud, Sigmund, 1930, O Mal-Estar na Civilização, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, página 89; foto: drogariasantoremedio
Rui Iwersen
Freud explica nº 34
A agressividade nº 16
Agressividade e sentimento de culpa
(…) Conhecemos, assim, duas origens do sentimento de culpa: uma que surge do medo de uma autoridade, e outra, posterior, que surge do medo do superego.
A primeira insiste numa renuncia às satisfações instintivas; a segunda, ao mesmo tempo em que faz isso, exige punição, de uma vez que a continuação dos desejos proibidos não pode ser escondida do superego. Aprendemos também o modo como a severidade do superego – as exigências da consciência – deve ser entendida. Trata-se simplesmente de uma continuação da severidade da autoridade externa, à qual sucedeu e que, em parte, substituiu.
Percebemos agora em que relação a renúncia ao instinto se acha com o sentimento de culpa. Originalmente, a renúncia ao instinto constituía o resultado do medo de uma autoridade externa: renunciava-se às próprias satisfações para não se perder o amor da autoridade. Se se efetuava essa renúncia, ficava-se, por assim dizer, quite com a autoridade e nenhum sentimento de culpa permaneceria.
Quanto ao medo do superego, porém, o caso é diferente. Aqui, a renúncia instintiva não basta, pois o desejo persiste e não pode ser escondido do superego. Assim, a despeito da renúncia efetuada, ocorre um sentimento de culpa. (…)
Freud, Sigmund, 1930, O Mal-Estar na Civilização, Imago Editora, Rio de Janeiro; 1974, página 89; foto: trabalhoparaescola
Rui Iwersen
Freud explica nº 33
A agressividade nº 15
Superego e civilização
(…) A tensão entre o severo superego e o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade de punição.
A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada. (…)
Freud, Sigmund, 1930, O Mal-Estar na Civilização, Imago Editora, Rio de Janeiro; 1974, páginas 84 e 85; foto: pt.org.br
Rui Iwersen
Freud explica nº 32
A agressividade nº 14
Ego e superego
(…) Outra questão nos interessa mais de perto. Quais os meios que a civilização utiliza para inibir a agressividade que se lhe opõe, torná-la inócua ou, talvez, livrar-se dela?
Já nos familiarizamos com alguns desses métodos, mas ainda não com aquele que parece ser o mais importante. Podemos estudá-lo na história do desenvolvimento do indivíduo. O que acontece neste para tornar inofensivo seu desejo de agressão?
Algo notável, que jamais teríamos adivinhado e que, não obstante, é bastante óbvio. Sua agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade, enviada de volta para o lugar de onde proveio, isto é, dirigida no sentido de seu próprio ego. Aí, é assumida por uma parte do ego, que se coloca contra o resto do ego, como superego, e que então, sob a forma de ‘consciência’, está pronta para por em ação contra o ego a mesma agressividade rude que o ego teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos. (…)
Freud, Sigmund; 1930, O Mal-Estar na Civilização, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, página 84; foto: Paraná Portal
Rui Iwersen
Freud explica nº 31
A agressividade nº 13
O significado da evolução da civilização
(…) Porque isso [a unidade da humanidade] tem que acontecer, não sabemos; o trabalho de Eros é precisamente este. Essas reuniões de homens devem estar libidinalmente ligadas umas às outras. A necessidade, as vantagens do trabalho em comum, por si sós, não as manterão unidas. Mas o natural instinto agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um, se opõe a esse programa da civilização. Esse instinto agressivo é o derivado e o principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado a lado de Eros e que com este divide o domínio do mundo.
Agora, penso eu, o significado da evolução da civilização não mais nos é obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a Morte, entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como ela se elabora na espécie humana. Nessa luta consiste essencialmente toda a vida, e, portanto, a evolução da civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela vida.
E é essa batalha de gigantes que nossas babás tentam apaziguar com sua cantiga de ninar sobre o Céu.
Freud, Sigmund, 1930, O Mal-Estar na Civilização, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, página 83; foto: Jornal de Jundiaí
Rui Iwersen
Freud explica nº 30
A agressividade nº 12
A existência em sociedade
(…) Não é possível, dentro dos limites de um levantamento sucinto, examinar adequadamente a significação do trabalho para a economia da libido. Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana.
A possibilidade que esta técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional, e para os relacionamentos humanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que goza como algo indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade. (…)
Freud, Sigmund, 1930, O Mal-Estar na Civilização, Imago Editora, Rio de Janeiro; 1974, página 37, nota de rodapé; foto: Portal G37
Rui Iwersen
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