Meu relato de luta contra a AIDS e de outras lutas
Após 42 anos como servidor da saúde publica, 40 anos de formação em medicina, e 32 anos de exercício da medicina e da psiquiatria na Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis, em junho de 2013 encerrei oficialmente minha atividade de clínica médico-psiquiátrica na saúde pública, com dedicação especial à saúde mental e à AIDS. Com um misto de satisfação e de preocupação, apresento aqui um relato de minhas atividades profissionais iniciadas em 1971.
Em 1973 eu me formei em medicina na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Desde o 4º ano do curso, até minha formatura, trabalhei no Manicômio Judiciário (atual Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico – HCTP) onde atuei e aprendi com os psiquiatras Pedro Largura, Aroldo Bertelli, Aldicir Antonelli e Diogo Nei Ribeiro. Nos últimos anos de faculdade fui monitor da cadeira de Psiquiatria, com a grata oportunidade de conviver e aprender com os professores Antônio Santaella, Júlio Cesar Gonçalves, Abelardo Viana, Pedro Largura e Ari Sell. Na época, Júlio Cesar Gonçalves, diretor do Hospital Colônia Santana (atual Instituto de Psiquiatria – IPQ), e Abelardo Viana, funcionário do Departamento de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde, assessorados pela Organização Panamericana de Saúde (OPS) foram atores e lideres na desospitalização da atenção à saúde mental e na organização do sistema ambulatorial de saúde mental no Estado de Santa Catarina nos anos 1970 e 1980, “a primeira ação concreta de reforma psiquiátrica no Brasil”. Eu tive a honra de participar deste processo, estagiando e trabalhando no Hospital Colônia Santana e no Instituto São José no início dos anos 70 e, a partir de 1980, como médico da Secretaria de Saúde de Florianópolis. Sob a liderança e orientação destes colegas da Secretaria Estadual de Saúde, vários municípios iniciaram a organização de seus Programas de Saúde Mental, como fizemos em Florianópolis a partir de 1984, por minha inciativa e sob minha coordenação.
De 1975 a 1977 fiz, na França, especialização em Psiquiatria. Durante dois anos e meio estudei e cliniquei em universidades de Paris (professor Daumeson), Estrasburgo (professor Kammerer) e Marselha (professor Sutter). De volta ao Brasil, influenciado pela psiquiatria francesa (setorizada e multiprofissional), inglesa, italiana (Psiquiatria Democrática) e americana (Psiquiatria Comunitária), em 1980, a convite do doutor Marco da Ros, chefe do Departamento de Saúde Pública, que havia conseguido o “direito de ter metade dos médicos contratados por indicação técnica”, iniciei meu trabalho como médico da ‘Secretaria de Saúde, Educação e Desenvolvimento Social’ de Florianópolis. Também em 1980, com outros colegas de Florianópolis, participei da organização do Sindicato dos Médicos de Santa Catarina, do qual fui Secretário nas duas primeiras gestões.
Após três anos de exercício de clínica médica e psiquiátrica no ‘Posto de Saúde’ da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, decidi me especializar em saúde mental. Em 1983, no Rio de Janeiro, fiz o Curso de Especialização em Psiquiatria Social (atual Curso de Especialização em Saúde Mental) promovido pelo Ministério da Saúde e pela Escola Nacional de Saúde Pública. Em 1984, de volta a Florianópolis, organizei (e coordenei até 1992) o Programa de Saúde Mental da Secretaria de Saúde. Neste programa, além de organizar a atenção em saúde mental na rede municipal de saúde, com importante participação dos médicos generalistas e dos outros profissionais de saúde, agíamos e estudávamos em equipes multidisciplinares. Na época, entre as questões de saúde analisadas pelo Programa de Saúde Mental havia uma nova doença, a AIDS, com nítidas repercussões psicológicas e psiquiátricas. Em 1986, após estudos e observações da AIDS no Brasil e no mundo, organizei (e coordenei até 1992), na Secretaria de Saúde de Florianópolis, o Programa de Controle da AIDS, denominado atualmente Programa de DST/HIV/AIDS. Os programas de DST/HIV/AIDS e de Saúde Mental de Florianópolis foram oficializados junto ao Ministério da Saúde no início dos anos 1990, após a conclusão do processo de implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), estabelecido com nossa participação, através da 9ª Conferência Nacional de Saúde, na Constituição Federal de 1988.
Em 1986 participei também da organização do Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS (GAPA) de Florianópolis, e fui seu Presidente nas duas primeiras gestões e Secretário Geral na terceira gestão. Nesta época, como Multiplicador de Aconselhamento em AIDS do Ministério da Saúde, eu viajava pelo Estado e ajudei na organização de programas de AIDS e de saúde mental e na construção de GAPAs em vários municípios do Estado, culminando com a organização do GAPA SC.
A partir de 1992, com nossa organização do Ambulatório de Saúde Mental e do Ambulatório de DST/AIDS no Centro de Saúde do Centro – CSII Centro, eu ali trabalhei até 2007 com saúde mental e com saúde mental e AIDS, alternando meu trabalho ambulatorial com minha atuação no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS Ponta do Coral), que eu ajudara a organizar em 1995 nas dependências do Ambulatório de Saúde Mental.
De 1996 a 1998, em Paris, fiz Mestrado (DEA) em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Paris V – Sorbonne sob orientação do antropólogo Jean-Pierre Warnier, tendo desenvolvido e apresentado estudos sobre o Processo de Globalização Social, aumentando meu entendimento de questões sociais, sanitárias e ambientais globais. Em 1998, de volta a Florianópolis fui lotado novamente nos ambulatórios de Saúde Mental e de DST/AIDS e no CAPS Ponta do Coral.
Entre 2002 e 2003, com outros colegas com experiência em trabalhos em CAPS, participei do Curso de Especialização em Atenção Psicossocial promovido em Florianópolis pela UDESC e pelo Ministério da Saúde, ministrando a cadeira de Psicofarmacologia. Infelizmente, este curso não teve continuidade.
Em 2004, após 24 anos como único psiquiatra da Secretaria de Saúde de Florianópolis, novos psiquiatras começaram a ser contratados: Jaime Crespin por primeiro; Evelyn, Sonia, André, Daniel, Sérgio, Ana Paula e os outros nos anos seguintes. Em 2007, com a descentralização das ações de Saúde Mental e de AIDS, e com o fim do Ambulatório de DST/AIDS, fiquei lotado no Ambulatório de Saúde Mental da Policlínica Centro e no CAPS Ponta do Coral.
Em 2007, após a divulgação das conclusões do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU sobre o aquecimento global, intensifiquei estudos e iniciei a divulgação de materiais ecológicos via internet, culminando com a organização, em março de 2009, do blog GaiaNet (gaianet.com), que eu edito até hoje. Também em 2007, o Ministério da Saúde estimulou a organização de Políticas Municipais de Saúde Ambiental, tema que passei a aprofundar. Para isto, iniciei o encerramento de minha atividade psiquiátrica privada, que se caracterizou, desde 1986, por consultas domiciliares, concluindo este processo em 2011.
Em 2009 encerrei minhas atividades no CAPS Ponta do Coral e, com a intenção de trabalhar com saúde ambiental no SUS, fui lotado na Diretoria de Vigilância em Saúde. Durante minha permanência nesta Diretoria, participei da organização e implantação, no SUS de Florianópolis, da atenção à gripe A e das Práticas Integrativas e Complementares (PICs), e fui o representante da Secretaria no Fórum de Gestão dos Resíduos Sólidos Urbanos (GIRS), onde continuo a participar. Em janeiro de 2011 assumi a Diretoria do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ). Porém, no início de 2012 as dificuldades técnicas e políticas entre as diretorias da Secretaria de Saúde de Florianópolis se intensificaram, em detrimento das convenientes ações de saúde pública e de saúde ambiental do CCZ e da Secretaria. Para honrar e valorizar os esforços, a união, e a lealdade da diretoria colegiada do Centro de Controle das Zoonoses, que eu implantara e coordenava, em junho de 2012 decidimos pela apresentação de meus pedidos de exoneração da direção do CCZ e de aposentadoria. Após um ano de férias e de licenças prêmios, desde 28 de junho de 2013 sou oficialmente “Inativo – Sec. de Saúde – tabela-classe-nível 6-10-20”, o nível máximo de um médico da Prefeitura Municipal de Florianópolis.
Após 42 anos na Saúde e 33 anos como servidor público, continuo servindo assessorando ONGs que lutam contra a AIDS, como membro do Grupo de Gerenciamento dos Resíduos Sólidos Urbanos de Florianópolis – GIRS, como Secretário do Grupo para a Gestão e Estudo de Projetos em Educação Ambiental para o Estado de Santa Catarina – Grupo GEPEA – SC, como editor de GaiaNet e, como diz o Doutor James Lovelock, como médico planetário.
Se necessário, continuarei servindo na coordenação do Grupo de Ação e Informação Ambiental – GAIA – e do Núcleo Florianópolis de GAIA – Gaia Floripa – que idealizei em 2007 como prováveis instrumentos coletivos úteis no futuro, que, pelo que se percebe, exigirá muito de tudo e de todos.
Florianópolis, 01 de dezembro de 2013
Rui Martins Iwersen